segunda-feira, 12 de julho de 2010

Bilhete ao senhor Grilo, de Sérgio Caparelli


Senhor Grilo, por favor,
interrompa a cantoria.
Não sei como nem por quê,
não me deixa adormecer
com seu cricri noite e dia.
Se quiser, meu senhor Grilo,
vá cantar pra sua tia.
Eu sei, você chora sozinho
quando eu saio pra brincar.
De noite chego cansado
e você desconsolado,
me espera pra conversar.
Se puder, meu senhor Grilo,
vá cantar noutro lugar.
Pois cricri nos meus ouvidos,
senhor Grilo, assim não dá.
Caia fora, vou dormir
leve embora seu cricri,
que só vem me atrapalhar.
Por favor, meu senhor Grilo,
vê se deixa de gritar.
Não entica com meu sono
para eu dormir tranqüilo.
Mamãe, braba, na cozinha
diz que a culpa é toda minha.
Sabe uma coisa, senhor Grilo,
você cricrila, eu não cricrilo.


Vocabulário:
interrompa – pare
entica – implica, aborrece
desconsolado – triste, sem consolo

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Crônica: “O SISTEMA DA MÃE JOANA”, de Vicente Cascione


Não conheço nenhum outro país do mundo em que um sujeito recebe salário para ficar de cócoras no mato da estrada, vigiando a integridade física de um radar que, por sua vez, vigia a velocidade dos automóveis que circulam pelo chamado Sistema Anchieta Imigrantes.

Quem nunca, ou quase nunca transita pelas estradas desse “fantástico” sistema, talvez perdesse o interesse em prosseguir na leitura desta crônica - digamos – rodoviária. A atenção de algumas pessoas incide sobre temas mais palpitantes, relativos a seu bolso, à sua curiosidade mórbida, ao Big Brother e outros clássicos da cultura universal, e ao sangue que escorre das tragédias e nos inunda a retina, como testemunhas oculares, sujeitos passivos da realidade, prisioneiros do medo ou da indiferença.

Mas mesmo quem não tem o privilégio de rodar pela Anchieta e a Imigrantes sob as “bênçãos” da Ecovias, lerá um extrato da realidade do Sistema.

Pela maneira como nos locomovemos, a pé ou por meio de automóveis, caminhões, motos e bicicletas, revela-se a média do comportamento social.

Nossos patrícios são britânicos. Têm o hábito de adotar a esquerda como mão de direção, como na Grã Bretanha, embora as leis tupiniquins determinem o contrário.

Se alguém quiser livrar-se do séquito de “esquerdistas”, tem que trafegar ou ultrapassar pela direita, onde os espaços são mais disponíveis.

No Sistema Anchieta Imigrantes consagra-se essa prática, estimulada pelas autoridades (in)competentes. No entanto, reconheço serem ditas autoridades dotadas de grande senso humorístico. Espalham faixas aqui, e acolá, para brincar com os caminhoneiros. As faixas lhes advertem, em tom jocoso: “evite multas, trafegue pela direita”.

Mas como os caminhoneiros sabem que jamais serão multados - até porque não existe um único policial ao longo dos trechos da subida da Serra - eles ocupam todas as faixas disponíveis. São onipotentes, blindados às leis, à repressão, aos radares, e à fiscalização.

O amável leitor, usuário do Sistema sabe que nos raros comandos da polícia rodoviária caçam-se somente automóveis ditos de passeio, preferencialmente os mais novos, mais caros, e, sobretudo os importados.

Motos transitam pelas quatro faixas da pista da Imigrantes, e ainda passam por cima e por baixo dos veículos, como um enxame gigante, temerário e barulhento.

Olhem outro exemplo do espírito encarnado dos anglo-saxões e de históricos povos guerreiros. Existem “esquerdistas” que, rodando abaixo da velocidade máxima permitida, consideram uma afronta, um confronto, ou uma provocação, algum atrevido ousar ultrapassá-los. Guerra declarada. Matar ou morrer.

As pistas são um espelho dotado de água em abundância, propiciando eletrizantes momentos de hidroplanagem, e evocando a inesquecível memória do nosso Senna voando às cegas em nuvens e poeira de água, naqueles grandes prêmios impossíveis debaixo de chuva. Ao grande Ayrton, a Ecovias rende uma imorredoura homenagem.

Dá-lhe água, na estrada a céu aberto, e, também dentro dos túneis de onde brotam fartas nascentes para encharcar as pistas, porque impermeabilização é bobagem dos túneis europeus, frescura de francês, italiano e alemão.

Deveria haver UTIs, no Sistema, para atender aos casos de anginas, acidentes vasculares cerebrais e infartos dos usuários mais neuróticos, que por fartura de adrenalina e crises de ira santa, explodem ao longo do percurso. E também alguns hospícios para retirar de circulação os que enlouquecem subitamente no percurso dessa gincana desvairada em que carros, caminhões e motos espalham-se obrigando alguns idiotas a jogarem seu videogame ao vivo, ziguezagueando entre os obstáculos.

Finalmente, viva! a multidão de cones, estreitando as pistas a cada trecho. Cones com formato simbólico de chapéu de palhaço, esse trágico papel que as vítimas indefesas do Sistema desempenham.

Fonte: http://cascione.blog.uol.com.br/arch2009-04-19_2009-04-25.html