sexta-feira, 2 de julho de 2010

Crônica: “O SISTEMA DA MÃE JOANA”, de Vicente Cascione


Não conheço nenhum outro país do mundo em que um sujeito recebe salário para ficar de cócoras no mato da estrada, vigiando a integridade física de um radar que, por sua vez, vigia a velocidade dos automóveis que circulam pelo chamado Sistema Anchieta Imigrantes.

Quem nunca, ou quase nunca transita pelas estradas desse “fantástico” sistema, talvez perdesse o interesse em prosseguir na leitura desta crônica - digamos – rodoviária. A atenção de algumas pessoas incide sobre temas mais palpitantes, relativos a seu bolso, à sua curiosidade mórbida, ao Big Brother e outros clássicos da cultura universal, e ao sangue que escorre das tragédias e nos inunda a retina, como testemunhas oculares, sujeitos passivos da realidade, prisioneiros do medo ou da indiferença.

Mas mesmo quem não tem o privilégio de rodar pela Anchieta e a Imigrantes sob as “bênçãos” da Ecovias, lerá um extrato da realidade do Sistema.

Pela maneira como nos locomovemos, a pé ou por meio de automóveis, caminhões, motos e bicicletas, revela-se a média do comportamento social.

Nossos patrícios são britânicos. Têm o hábito de adotar a esquerda como mão de direção, como na Grã Bretanha, embora as leis tupiniquins determinem o contrário.

Se alguém quiser livrar-se do séquito de “esquerdistas”, tem que trafegar ou ultrapassar pela direita, onde os espaços são mais disponíveis.

No Sistema Anchieta Imigrantes consagra-se essa prática, estimulada pelas autoridades (in)competentes. No entanto, reconheço serem ditas autoridades dotadas de grande senso humorístico. Espalham faixas aqui, e acolá, para brincar com os caminhoneiros. As faixas lhes advertem, em tom jocoso: “evite multas, trafegue pela direita”.

Mas como os caminhoneiros sabem que jamais serão multados - até porque não existe um único policial ao longo dos trechos da subida da Serra - eles ocupam todas as faixas disponíveis. São onipotentes, blindados às leis, à repressão, aos radares, e à fiscalização.

O amável leitor, usuário do Sistema sabe que nos raros comandos da polícia rodoviária caçam-se somente automóveis ditos de passeio, preferencialmente os mais novos, mais caros, e, sobretudo os importados.

Motos transitam pelas quatro faixas da pista da Imigrantes, e ainda passam por cima e por baixo dos veículos, como um enxame gigante, temerário e barulhento.

Olhem outro exemplo do espírito encarnado dos anglo-saxões e de históricos povos guerreiros. Existem “esquerdistas” que, rodando abaixo da velocidade máxima permitida, consideram uma afronta, um confronto, ou uma provocação, algum atrevido ousar ultrapassá-los. Guerra declarada. Matar ou morrer.

As pistas são um espelho dotado de água em abundância, propiciando eletrizantes momentos de hidroplanagem, e evocando a inesquecível memória do nosso Senna voando às cegas em nuvens e poeira de água, naqueles grandes prêmios impossíveis debaixo de chuva. Ao grande Ayrton, a Ecovias rende uma imorredoura homenagem.

Dá-lhe água, na estrada a céu aberto, e, também dentro dos túneis de onde brotam fartas nascentes para encharcar as pistas, porque impermeabilização é bobagem dos túneis europeus, frescura de francês, italiano e alemão.

Deveria haver UTIs, no Sistema, para atender aos casos de anginas, acidentes vasculares cerebrais e infartos dos usuários mais neuróticos, que por fartura de adrenalina e crises de ira santa, explodem ao longo do percurso. E também alguns hospícios para retirar de circulação os que enlouquecem subitamente no percurso dessa gincana desvairada em que carros, caminhões e motos espalham-se obrigando alguns idiotas a jogarem seu videogame ao vivo, ziguezagueando entre os obstáculos.

Finalmente, viva! a multidão de cones, estreitando as pistas a cada trecho. Cones com formato simbólico de chapéu de palhaço, esse trágico papel que as vítimas indefesas do Sistema desempenham.

Fonte: http://cascione.blog.uol.com.br/arch2009-04-19_2009-04-25.html

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